Charly Techio entre ruínas e reflexos em uma viagem à finitude

Em locais que respiram história e lembranças que encaram a mortalidade, a fotógrafa transforma cenários em palco de uma narrativa visual sobre memória, fragilidade e persistência do humano

Charly Techio entre ruínas e reflexos em uma viagem à finitude
Foto da série Memórias e Paisagens Simbólicas, de 2013

Berlim é uma cidade que carrega histórias em cada fissura, em cada pedaço de concreto descascado, em cada vidro quebrado que resiste ao tempo. Para quem a percorre com atenção, a cidade revela camadas ocultas de passado e presente que coexistem em silêncio, como se esperassem alguém capaz de ouvir. Para a fotógrafa brasileira Charly Techio, Berlim não foi apenas um cenário; foi um espaço de encontro consigo mesma, com sua memória e com os temas que atravessam toda a sua produção: a finitude, a presença e a relação entre homem, corpo e lugar.

Em junho de 2013, durante uma residência artística na Alemanha, Charly desenvolveu Memórias e Paisagens Simbólicas, série que mergulha em espaços abandonados após a unificação alemã. Locais que haviam sido esquecidos e deixados ao acaso se transformaram em palcos para uma narrativa visual etérea e melancólica. A energia desses lugares parecia condensar-se em cada parede, em cada corredor silencioso, quase como se fosse possível tocá-la. O trabalho não se limitou a documentar ruínas. Charly incorporou a si mesma aos espaços, usando o autorretrato como elemento de deslocamento da imagem. Cada fotografia cria uma suspensão entre tempo e lugar, entre o que é real e o que se imagina, conferindo às cenas uma qualidade onírica. Ao atravessar esses cenários, a artista dialoga com a memória coletiva e pessoal, tornando o vazio habitado e o abandono um reflexo da vida e da passagem do tempo. A imagem da banheira vazia se tornou uma de suas preferidas, condensando a tensão entre corpo, espaço e memória.

Foto da série Memórias e Paisagens Simbólicas, de 2013
Foto da série Memórias e Paisagens Simbólicas, de 2013

O projeto foi exibido no Bethanien Haus, em Berlim, e premiado com Menção Especial pelo Conjunto da Obra no 1º Salão de Arte Contemporânea e Novas Tecnologias, em Ponta Grossa, no Paraná, no mesmo ano. Para Charly, o reconhecimento não se limita aos prêmios: a experiência da residência consolidou seu olhar e sintetizou anos de pesquisa estética e poética. Berlim lhe devolveu o olhar, mostrando que o vazio também pode estar cheio de histórias.

Foto da série Memórias e Paisagens Simbólicas, de 2013
Foto da série Memórias e Paisagens Simbólicas, de 2013

Em Memórias e Paisagens Simbólicas, Charly transforma o abandono em presença. As janelas quebradas, os corredores vazios, os objetos esquecidos não são apenas signos de ausência: tornam-se protagonistas. Seu olhar sobre o mundo digital, combinado com a experiência física de fotografar, compõe um discurso visual que atravessa o tempo: o que permanece, o que se transforma e o que se perde. É essa relação entre finitude e criação, entre memória e invenção, que dá consistência e força à obra de Charly Techio.

Foto da série LaPetiteMort, de 2023

Nascida em Ipumirim, em Santa Catarina, em 1977, Charly Techio pesquisa fotografia a cerca de 20 anos, explorando formas de tensionar a relação da imagem com a realidade. No início, suas intervenções eram físicas, mexendo nos negativos, experimentando o laboratório analógico, provocando distorções manuais na captura da imagem. Com a chegada da fotografia digital, surgiram novas possibilidades, como tratamento de imagem, colagem digital e, mais recentemente, o uso da inteligência artificial como extensão de sua pesquisa criativa. Charly utiliza uma DSLR Nikon D750, prefere fotografar com uma lente 50 mm e gosta de trabalhar com luz natural, elementos que considera essenciais para captar a atmosfera íntima e sensível de suas cenas.

Além de Berlim, desenvolveu outros projetos de destaque, como Estado de Suspensão no Museu da Fotografia de Curitiba e (ir)realidades de um mundo virtual no MUMA, também em Curitiba, que investigam a experiência contemporânea diante da tecnologia, memória e identidade. Suas obras integram coleções importantes, como o Espaço Cultural Contemporâneo de Brasília, e ela também atua como professora, curadora e supervisora do Curso de Fotografia do Centro Europeu, transmitindo sua experiência a novas gerações.

Foto da série Jardim Interior, de 2022

A fotografia de Charly é marcada por uma aura sombria, contemplativa e poética, na qual o autorretrato ocupa lugar central. Ela não se mostra por vaidade, mas como elemento de deslocamento da narrativa, inserindo o corpo no espaço e transformando cada cena em um diálogo entre presença e ausência. Charly combina conhecimento técnico com reflexão crítica e histórica sobre a imagem. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Publicidade, possui pós-graduação em Fotografia e em História da Arte Moderna e Contemporânea. Entre seus primeiros cursos, destaca-se a Experimentação em Fotografia Artística, no Ateliê da Imagem, no Rio de Janeiro, uma experiência que, nas palavras da artista, foi “um pé na porta” para possibilidades além do registro. Mais tarde, a pós em História da Arte Moderna e Contemporânea em Curitiba expandiu sua visão, permitindo conexões entre fotografia, arte e memória.

Os temas que atravessam sua produção são recorrentes: a finitude da vida, a efemeridade dos objetos e da memória, a relação entre homem e natureza e o impacto da vida digital sobre nossas percepções. As imagens surgem como deslocamento da narrativa visual, aproximando o espectador da experiência do lugar. Muitas vezes, Charly trabalha sozinha, o que permite que seja modelo de si mesma, experimentando gestos, posições e perspectivas que tensionam o real e o imaginário. Inspira-se em sonhos, cinema e videoclipes dos anos 1990, mas também nos questionamentos contemporâneos sobre objetificação, etarismo e deterioração da vida palpável. Uma imagem notável envolve um coelho alugado em um bar, fotografado dentro de uma gaiola no mar, obra que se tornou uma das mais vendidas de sua carreira.

Foto da série Memórias e Paisagens Simbólicas, de 2013

Ao longo da trajetória, Charly participou de salões de arte e fotografia, como o Salão Paranaense, o MAM da Bahia e os Artistas sem Galeria em São Paulo. Recebeu prêmios e menções honrosas, como o primeiro lugar no Salão de Arte de Atibaia e menções no Foto Arte de Brasília e no Salão de Ponta Grossa. Para a artista, concursos são espaços de validação da poética, ampliação de currículo e divulgação do trabalho, além da possibilidade de premiação.

A chegada da inteligência artificial à fotografia é, para Charly, tanto desafio quanto oportunidade. Em 2023, começou a trabalhar com ferramentas de geração e edição de imagens por IA, incorporando-as em exposições. Ela reconhece a tecnologia como aliada, capaz de ampliar resoluções, baratear custos, gerar fundos ou mesclar imagens de forma complexa, mas reforça que a ética é essencial: qualquer uso de IA deve ser declarado. Para Charly, a fotografia humana permanece insubstituível quando se trata de memória e experiência vivida. Casamentos, retratos pessoais e ensaios íntimos carregam emoção, presença e vivência que nenhuma máquina consegue reproduzir. A IA não substitui a sensação de estar ali, de sentir, de construir uma narrativa em tempo real com outro ser humano ou com o próprio corpo.

Foto da série Cruzamentos, de 2024
Foto da série Circuitos do Silêncio, de 2025

Entre janelas quebradas e memórias suspensas, Charly Techio nos convida a percorrer o limiar entre o real e o imaginário, a olhar para o vazio e perceber nele toda a densidade da vida. Suas fotografias são mapas de sensações, registros de ausências, pedaços de sonhos e reflexos de um tempo que se perde e se reinventa. É um convite a permanecer em suspensão, a sentir o peso e a leveza do instante, e a perceber que cada imagem é, ao mesmo tempo, um arquivo do mundo e um espelho de quem observa.

Conheça o trabalho de Charly Techio

Instagram: @charlytechio
Facebook: Charly Techio Fotografia