Sincretismo da vida

Entre santos, orixás e a espiritualidade que atravessa Cuba, Leandro Taques captura a crença em São Lázaro mostrando como a fé se transforma, mistura culturas e ressuscita sentidos para quem acredita

Sincretismo da vida

O homem se arrasta de costas pelo asfalto quente. O corpo, já vencido, parece querer parar; mas a promessa o arrasta junto. Cada metro conquistado é uma batalha entre pele e pedra, entre carne e fé. A cena se repete em dezenas de corpos: joelhos sangrando, mãos calejadas, lágrimas misturadas ao suor. Chegam assim, exaustos, ao pátio do Santuário de El Rincón, em um distrito de Havana (Cuba). Lá, são recolhidos e abraçados por padres, cuidados por voluntários. Alguns sorriem: a dor do corpo é menor que a gratidão que carregam no peito.

Na véspera de 17 de dezembro, as ruas estreitas do povoado se transformam em rio humano. Cinquenta mil peregrinos, vestidos de roxo, caminham em silêncio ou em cantos roucos, oferecendo flores, velas, sacos de juta. O comércio improvisado vende pão com cerdo, frango frito, imagens do santo em miniatura. O cheiro de comida se mistura à fumaça de velas e incensos. Tudo gira em torno de San Lázaro — santo múltiplo, que é ao mesmo tempo o Lázaro ressuscitado por Jesus, o mendigo leproso da parábola bíblica e Babalú Ayé, orixá africano guardião das doenças e da cura. Em Cuba, eles convivem no mesmo corpo. Foi para dentro dessa atmosfera densa que o fotógrafo paranaense Leandro Taques mergulhou.

O encontro com o destino

Havana, 17 de dezembro de 2012. Leandro acabara de pousar na ilha pela primeira vez quando, dois dias depois, conheceu o fotógrafo Raúl Cañibano num café da cidade. Tinha a missão de levar um presente enviado pelo também fotógrafo João Urban. Levou um livro de presente; recebeu outro em troca, sobre San Lázaro Babalú Ayé.

“Ele me contou que, no dia em que cheguei, havia acontecido a maior festa de devoção a esse santo, em El Rincón. Eu pensei: na próxima vez, estarei lá”, recorda.

A promessa ficou ecoando.

O dia que nunca acabou

Um ano depois, em dezembro de 2013, de volta a Cuba, Taques cumpriu o juramento. Acordou antes do sol nascer para vivenciar a devoção a San Lázaro, o Babalú Ayé, e só guardou a câmera quando a noite já se fechava. “Foi o dia que mais fotografei na vida: 970 cliques em 16 horas”, diz.

Cada clique era uma história. Uma mulher arrastando-se de joelhos com a foto do filho preso nas mãos. Um homem carregando pedras na cabeça como penitência. Crianças abraçadas ao esforço dos pais. Cães que, de repente, atravessavam a cena como se também guardassem a fé.

“É impossível não se emocionar. A fé em Cuba é uma coisa que transcende religião ou política. O povo acredita. E acredita muito.”

Um santo em três rostos

Em El Rincón, não há conflito entre devoções. No mesmo altar, repousam o Lázaro bíblico, o mendigo ferido lambido por cães e o poderoso Babalú Ayé. Um sincretismo que não precisa de explicações teológicas — basta existir.

“Você vê um povo inteiro se entregando, seja pela cura de uma doença, pela salvação de um filho, pela esperança de dias melhores. É fé encarnada”, observa o fotógrafo.

O livro, a memória, a partilha

Duas viagens depois, com milhares de imagens acumuladas, nasceu o livro San Lázaro Babalú Ayé, publicado graças a financiamento coletivo e lançado com exposição no Museu da Fotografia, em Curitiba. São 90 fotografias escolhidas entre cinco mil. Texto do jornalista José Carlos Fernandes prepara o leitor para o impacto que terão ao ver as imagens, dando corpo e voz ao que Taques viu.

“O mais forte desse trabalho é que ele me ensinou que a fé é universal. O santo muda, o altar muda, mas a emoção é a mesma. O que me interessa é a catarse, o momento em que a devoção se materializa no gesto.”

O olhar de perto

Leandro não fotografa de longe. Prefere lentes que o obrigam a se aproximar: 24mm, 50mm. Conversa, espera, troca olhares antes de disparar. “Não gosto de fotos roubadas. Prefiro quando a pessoa percebe que está sendo fotografada, quando há cumplicidade. É aí que nasce o retrato.”

Esse mesmo olhar já percorreu o Círio de Nazaré, no Pará; a romaria de Juazeiro do Norte, no Ceará; e a Festa do Divino em Paranaguá, no litoral no Paraná. Mas Cuba deixou marcas diferentes. “San Lázaro é um santo do povo. Está em todos os cantos da ilha. É um ícone que vai além da religião.”

As imagens da peregrinação ao Santuário Nacional em devoção a San Lázaro Babalú Ayé hoje estão, além das páginas do livro de Taques, no acervo da Maison Européenne de La Photographie, em Paris (França). Para o fotógrafo, o verdadeiro valor não está no destino das fotos, e sim no que aprendeu ao fazê-las: que a fé, em qualquer lugar do mundo, é uma linguagem que todos compreendem. 

Conheça o trabalho de Leandro Taques

 Site: www.leandrotaques.com. Na página, é possível encomendar o livro San Lázaro Babalú Ayé.