O voo da menina

A magia de Haruo Ohara em um clique que desafia o tempo

O voo da menina
Maria Ohara, aos 7 anos, brinca com o primo Kazuo Tomita em um sítio da família no Paraná, 1955. O olhar do pai, Haruo, fez do salto um ícone da fotografia brasileira. (Crédito da foto: Haruo Ohara/Acervo Instituto Moreira Salles)

Em um instante suspenso, no miolo dos anos 1950, uma menina parece negociar com as leis da física. Escada acima, guarda-chuva aberto, ela salta – e por um segundo flutua. O clique transforma a queda em voo, a brincadeira, em mito doméstico. Quem olha a foto acredita que ali, no quintal de um sítio paranaense, a infância quase inventou a asa.

Era 1955, e a pequena Maria Ohara tinha sete anos. Não pensava em Mary Poppins, nem em voar além das nuvens; queria apenas repetir a peraltice que fazia os primos rirem. Saltava sobre fardos de palha quando alguém trouxe um guarda-chuva. O pai, Haruo, atento como sempre, pediu que ela encenasse de novo. Uma vez, duas vezes, até oito. “Ele fez várias fotos, não foi só uma”, recorda Maria, hoje com um sorriso que devolve o frescor daquele dia. O primo que aparece na cena vive em Maringá e, sempre que se encontram, a conversa ressurge: “Lembra do salto? Do guarda-chuva?”.

A cena, que evoca a leveza da infância e a liberdade da imaginação, é um dos ícones da obra do fotógrafo, um convite a um universo onde o cotidiano se transforma em poesia.

Haruo Ohara nasceu no Japão em 1909, chegou ao Brasil aos 18 e fincou raízes em Londrina. Cafeeiro por ofício, fotógrafo por paixão. Autodidata, leitor ávido, tornou-se figura de liderança na colônia japonesa. A câmera chegou a ele em 1934, comprada após o casamento com Kô Sanada. O primeiro clique – Kô ao lado de um pé de laranja – inaugurou uma vida inteira dedicada a capturar instantes do campo, da família, da vizinhança. Ganhou prêmios em clubes fotográficos e construiu, sem pretensão artística, um acervo de milhares de negativos que hoje é guardado no Instituto Moreira Salles (IMS).

Para Sérgio Burgi, coordenador de fotografia do IMS, a grandeza de Haruo está em ter feito de sua lente uma extensão da vida comum. “Ele trabalhou fora das demandas comissionadas. Era expressão pessoal, um diário visual da família e da comunidade. Ao mesmo tempo, havia consciência de cena, direção, encenação”, afirma. O salto de Maria, segundo Burgi, não é mero flagrante: é um quadro construído, com parentesco à obra de Jacques-Henri Lartigue (fotógrafo e pintor francês – 1894-1986), onde o movimento flerta com o sonho. “É uma imagem de voo, de cinema, quase Mary Poppins na roça.”

Haruo Ohara em autorretrato no bambuzal no sítio Tomita, Londrina, em 1953. O fotógrafo transformava a vida rural em poesia visual. (Crédito da foto: Haruo Ohara/Acervo Instituto Moreira Salles)

A exposição "Olhares", realizada na Casa de Cultura de Londrina em 1998, foi a primeira grande mostra individual pública da obra do fotógrafo, organizada em cinco sequências temáticas: "Londrinenses", "Olhar Haruo", "Cenas Rurais", "Gente" e "Mu-ga". Rodrigo Garcia Lopes, poeta e curador da exposição, sentiu o poder das imagens muito antes de saber quem era o fotógrafo. "Já havia visto fotos dele quando criança, em Londrina, minha cidade natal, sem saber que eram dele (...) algumas representam a história da verdadeira saga que foi a colonização da cidade. Depois, na adolescência e na universidade, Haruo Ohara era um nome que surgia constantemente nas conversas entre amigos artistas."

Para Garcia Lopes, a foto da menina com o guarda-chuva revela Haruo como um excelente diretor de cena, que montava mentalmente suas fotografias, como um "poeta da imagem". Ele descreve o artista como um mestre com profundo conhecimento de sua arte, que acompanhava as tendências e não tinha medo de ousar. “Pareciam cenas de cinema, como John Ford [cineasta estadunidense – 1894-1973], [Yasujiro] Ozu [cineasta japonês – 1903-1963], [Akira] Kurosawa [cineasta japonês – 1910-1998]”, afirma.

Saulo Ohara, neto de Haruo, lembra-se dos cheiros do laboratório do avô, dos rolos de filme que ganhava para brincar. “Ele nunca disse que era fotógrafo ou artista. Era meu avô, que sempre tinha a câmera à mão”, conta. Foi só em 1998, na exposição Olhares, que Saulo percebeu a dimensão da obra. E foi diante do interesse do IMS em receber o acervo em 2008 que a família entendeu de fato: "Haruo estava entre os grandes”.

A imagem da menina pulando da escada com um guarda-chuva é mais do que um registro; é um convite à imaginação, um testemunho da sensibilidade de Haruo Ohara em transformar o ordinário em extraordinário. Sua obra, agora preservada e estudada, continua a inspirar e lembrar a beleza que reside nos pequenos gestos e no olhar atento de um artista.

 

Conheça o trabalho de Haruo Ohara

Site do Instituto Moreira Salles: https://ims.com.br/titular-colecao/haruo-ohara/