O estilingue, o cavalo e a lente
A foto de Edson Jansen que enfrentou a ditadura
            No meio da fumaça e do tropel dos cavalos, um estudante magro e olhos determinados ergue o braço. Na ponta dos dedos, um estilingue — arma caseira contra o aparato oficial. Diante dele, uma fileira de policiais montados, cacetetes em punho. É maio de 1968, no campus Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná, no bairro Jardim das Américas, em Curitiba. O país se encrava numa encruzilhada: o ensino público está sob ataque, e o gesto mais simples pode virar ato heroico.
O estudante se chama José Ferreira Lopes, mas os amigos o conhecem por Zequinha, ou Dr. Zequinha como ele entrou para a história. Cursando o quarto ano de Medicina, ele se vê forçado à linha de frente de uma disputa que extrapola muros universitários: a ditadura planejava implementar a cobrança em cursos superiores públicos – o chamado “acordo MEC-USAID” – e estudantes reagiram. “Queriam cobrar mensalidade. A gente foi impedir o vestibular. E conseguimos barrar”, recorda ele, a voz firme, olhos vivos. O acordo firmado entre o Ministério da Educação do Brasil e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês) previa reformar o ensino brasileiro de acordo com padrões impostos pelo país norte-americano.
Enquanto Dr. Zequinha empunha seu estilingue, Edson Jansen, jovem repórter fotográfico de O Estado do Paraná, esgueira-se no tumulto com uma Rolleiflex pendurada no pescoço. A câmera exige paciência: compor, mirar, apertar o obturador. Ele não hesita. Ele fotografa. E naquele clique – de luz, não de pólvora – cai produzido um símbolo: David contra Golias em plena ditadura.
“A imagem é de uma desproporção simbólica e tremenda”, diz o historiador Daniel Medeiros. “O jovem de estilingue contra o aparato armado. É bíblico. E também quixotesco: o idealista frente a forças que nem ele compreende inteiramente.”
A fotografia resultou no Prêmio Esso de Fotojornalismo de 1968 – um feito ousado para um fotógrafo curitibano, em plena repressão. O risco era real.
“O jornal bancou a publicação mesmo com a censura rondando”, lembra Antonio Costa (Socozinho), colega de redação de Jansen. “A PM batia em todo mundo. Ele gritou: ‘Sou fotógrafo!’. Mas ninguém respeitava nada.”
Socozinho guarda dele uma lembrança à meia-luz: “Jansen era inquieto. Preferia a rua, o instante urgente. Não falava de prêmios".
Dr. Zequinha lembra essa cena com mistura de riso e espanto: “A cavalaria vinha com espada, e a gente tinha que se virar com bola de gude e elástico. Às vezes o cavalo patinava, caía… Era defesa, não agressão”.
Após o clique, o caos. Zequinha fugiu, mas foi preso anos depois. Torturado, viveu na clandestinidade. Mudou nome, sotaque, cidade. Trabalhou como operário, refez os estudos. Doze anos para se formar médico. Mas permaneceu fiel ao ideal. “Quando veio o AI-5, pulei muro do Hospital de Clínicas. Era fugir ou morrer.”
“Valeu porque chegou a redemocratização”, resume ele. “Jansen queria o mesmo que eu: democracia.”
Daniel Medeiros analisa a fotografia como um ponto de ruptura histórica – mais que esteticamente valiosa, uma síntese do espírito de 1968: “Era uma juventude que acreditava poder transformar o país. Hoje, talvez falte esse gás rebelde. O estilingue virou metáfora do que já fomos”.
Socozinho prefere lembrar Jansen pelo afeto. “Era simples, generoso. Um companheiro de luta, mais que fotógrafo.”
A fotografia permanece viva. Em cada grão, há tensão, ruído, velocidade – e o instante suspenso em que um estilingue mirou o autoritarismo. Mas a vida de Jansen não ficou só nesse momento eternizado.

Anos depois de sua glória, Edson Jansen sofreu uma queda em casa no dia 2 de agosto de 2012. Internado na UTI do Hospital Evangélico de Curitiba por complicações decorrentes do acidente, faleceu no dia 26 de agosto, aos 69 anos. Mesmo após a morte, o silêncio característico de Jansen parecia manter-se: ele nunca quis ser ícone. Preferiu ser presença constante, discreta, entre luzes, sombra e revolta.
No fim das contas, Jansen e Zequinha provaram ser teimosos – são desses que acreditam que um gesto pequeno pode derrubar um gigante.