Dar flores aos vivos

Ensaio em cianotipia de Maria Luiza Amorim, criado em Buenos Aires, revela em azul e sépia o gesto de oferecer flores em vida

Dar flores aos vivos
Foto da série Las flores se dan para los vivos: azul e o sépia insinuam o tempo, a memória e o sonho.

Nas esquinas de Buenos Aires, onde o concreto encontra a pressa e a rotina se confunde com o ruído, há um gesto que resiste: a oferta das flores. Pequenos postos espalhados pela cidade oferecem cores intensas, aromas e delicadezas que interrompem o fluxo apressado. Foi ali, nessas pausas visuais, que a fotógrafa brasileira Maria Luiza Amorim encontrou matéria para um ensaio que mistura afeto, memória e técnica ancestral: Las flores se dan para los vivos.

Uma residência artística a aproximou da cena cultural argentina e ampliou seu olhar sobre os rituais urbanos da cidade. O costume de comprar flores nas esquinas portenhas, muitas vezes sem motivo aparente, chamou sua atenção desde o início.

Foto da série Las flores se dan para los vivos: as barracas de venda de flores fazem parte da paisagem de Buenos Aires.

O título da série nasceu de uma conversa com um vendedor paraguaio morador da capital argentina. Ao observar essa prática tão comum em Buenos Aires – e pouco frequente em Florianópolis (SC), cidade de origem de Maria Luiza, onde flores são associadas sobretudo a rituais de despedida – a fotógrafa ouviu dele uma frase marcante: “As flores devem ser dadas aos vivos”. A simplicidade e a potência dessas palavras moldaram não apenas o nome, mas também o sentido da obra: registrar e celebrar a vida enquanto ela acontece.

Foto da série Las flores se dan para los vivos: a cianotipia, com sua lentidão, impõe contemplação.
Foto da série Las flores se dan para los vivos: a cianotipia revela o azul intenso na ampliação da foto.

Para traduzir essa ideia, Maria Luiza recorreu à cianotipia, processo fotográfico inventado em 1842. A técnica envolve sais de ferro que, ao serem sensibilizados pela luz solar, oxidam-se em tonalidades de azul profundo. É uma fotografia que depende da espera, do tempo que o sol leva para marcar o papel, da paciência em aceitar que a natureza também participa da criação.

O azul intenso, no entanto, parecia destoar das flores. Foi então que a artista decidiu experimentar a viragem, processo que transforma a cor original. Utilizou mate – símbolo da cultura argentina – para alterar os azuis em tons sépia, criando uma conexão direta com o território retratado. A etapa seguinte trouxe ainda mais singularidade: a pintura manual das flores. Assim, cada imagem tornou-se uma peça única, resultado de três gestos sucessivos – o clique da câmera, a impressão solar e o toque final do pincel.

Maria Luiza fotografa tanto no digital quanto no analógico. No digital, utiliza uma Canon 6D, geralmente acompanhada da versátil lente 24-105 mm. Já no analógico, alterna entre duas câmeras: uma Contax G1 e uma Canon Prima Junior DX, esta última carregada de história — um presente inesperado de Buenos Aires, encontrada na rua no caminho de volta para casa após seu primeiro Ano Novo na cidade.

Foto da série Las flores se dan para los vivos: resultado de três gestos sucessivos – o clique da câmera, a impressão solar e o toque final do pincel.
Foto da série Las flores se dan para los vivos: um manifesto visual que atravessa culturas.

O ensaio não é apenas um registro documental, mas um campo de experimentações. A técnica fala tanto quanto o tema. A cianotipia, com sua lentidão, impõe contemplação. O azul e o sépia insinuam o tempo, a memória e o sonho. E a pintura manual devolve às flores o brilho de sua presença. O gesto de presentear flores reaparece na forma de oferecer imagens: vivas, táteis, irrepetíveis.

O contexto humano também atravessa a obra. Muitos vendedores de flores em Buenos Aires são imigrantes paraguaios, bolivianos ou venezuelanos. Já os viveiros que abastecem a cidade estão concentrados em Escobar, município a 32 quilômetros da capital argentina, região marcada pela presença japonesa. Maria Luiza percebeu que a tradição de comprar flores na cidade é resultado de encontros culturais. Sua série registra não apenas flores, mas também os gestos de quem as oferece e as histórias de quem as cultiva.

Maria Luiza Amorim: série registra não apenas flores, mas também os gestos de quem as oferece e as histórias de quem as cultiva (Crédito da foto: Maria Luiza Amorim).

Durante uma residência em Chaco, no norte argentino, a artista levou a investigação mais longe. Ali, utilizou pigmentos naturais como o extraído do quebracho, árvore fundamental para a economia local, mas também símbolo de exploração e desmatamento. Suas fotos ganharam novas camadas: flores tingidas com a história da terra, impregnadas por contradições de desenvolvimento e memória.

O público, até agora, tem respondido com surpresa e emoção. Alguns se detêm nos detalhes pintados, outros reconhecem a familiaridade das florarias portenhas. Mas todos percebem o mesmo chamado: não adiar gestos de afeto. “Quero que quem veja esse trabalho sinta a urgência de dar flores aos vivos, de valorizar as pessoas enquanto estão aqui”, resume Maria Luiza.

Foto da série Las flores se dan para los vivos.
Foto da série Las flores se dan para los vivos.
Foto da série Las flores se dan para los vivos.

As fotografias da série estão à venda e podem ser adquiridas diretamente com a artista. São obras que atravessam fronteiras e propõem ao colecionador um pacto: ter em casa a delicadeza de flores que nunca murcham, preservadas em azul, sépia e cor.

Assim, Las flores se dan para los vivos é mais que uma série fotográfica. É um manifesto visual que atravessa culturas, técnicas e tempos para lembrar que a vida merece ser celebrada agora. E talvez, ao passar por uma esquina florida, depois de conhecer o trabalho de Maria Luiza, seja impossível não pensar em quem merece receber essas flores hoje, enquanto ainda respira.

 

Conheça o trabalho de Maria Luiza Amorim

Instagram: @marialamorim